domingo, 5 de outubro de 2014 | By: Albicastelhano

Castelo de Castelo Branco (1979–1984 e 2000): síntese dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos e principais conclusões

Castelo de Castelo Branco
(1979–1984 e 2000):

síntese dos trabalhos arqueológicos
desenvolvidos e principais conclusões1
Carlos Boavida*


RESUMO    
No Inverno de 1979, um aluimento de terras no adro da Igreja de Santa Maria (Castelo
Branco, Portugal) colocou à vista diversos vestígios do passado. Organizou‑se
então uma
intervenção arqueológica, que decorreu ao longo de seis campanhas, entre 1979 e 1984. Segue‑se
uma síntese dos trabalhos desenvolvidos nessa época, tal como os de uma sondagem arqueológica
levada a cabo em 2000. Dão‑se
a conhecer igualmente alguns dos materiais recolhidos,
até agora inéditos em depósito, assim como as principais conclusões da sua análise.

ABSTRACT    
In the winter of 1979, a landslide at the churchyard of Santa Maria (Castelo
Branco, Portugal) exposed several artefacts of the past. An archaeological intervention was
organized, for six seasons, from 1979 to 1984.We summarize the outcomes of those interventions
and another one of 2000. We also share the main conclusions of the analysis of some
heretofore unpublished artefacts.


1. Contextualização histórica
Apesar dos trabalhos arqueológicos levados a cabo na região albicastrense, entre outros, por
Francisco Tavares Proença Júnior, pouco se sabe sobre a ocupação do espaço da actual cidade de
Castelo Branco antes da Reconquista. Embora tenham sido recolhidos diversos vestígios de época
romana, nomeadamente epigráficos (Garcia, 1979; Leitão, 1994, pp. 27–29; Salvado, 2002), a maioria
foram identificados fora do seu contexto original.
Eventualmente neste local, ou nas suas proximidades, estaria a intercepção de dois caminhos,
um vindo de norte, da região da Serra da Estrela, e outro vindo de leste, da Egitânia, o principal
núcleo urbano da Beira Interior naquele tempo. Estes dois percursos integrariam a rede secundária
à via Bracara Augusta ‑
Emerita (Alarcão, 2002, pp. 102–104; Marques, 1993, pp. 168–170). Este encontro,
de acordo com João de Almeida, terá motivado a construção de uma torre de vigilância no alto
do cerro da Cardosa, não só para controlo da via, mas também da resistência existente a norte, nos
Montes Hermínios (Almeida, 1945, pp. 397–398). Existiria então, entre o Cerro da Cardosa e o
Monte de São Martinho (a sul), uma pequena comunidade da qual restam vários vestígios (Proença,
1903, 1910; Cristóvão, 2004).
Com a queda do Império, o aumento da insegurança levou essa comunidade a refugiar‑se
no
cume da Cardosa, pela sua facilidade de defesa, mas também pelo controlo visual de todo o planalto
envolvente, fixando‑se
eventualmente junto à possível torre de vigilância existente. Ao mesmo
tempo, a difusão do Cristianismo no espaço ibérico encontrava‑se
bastante avançada, o que terá
levado à criação de diversos templos junto das comunidades rurais.
Todo este território, por altura da ocupação visigótica, integrava a diocese da Egitânia.
A mesma era constituída por duas outras paróquias, além da sua sede: Monecipio e Francos; esta
última corresponderia à que incluiria a comunidade da Cardosa, embora não se saiba se essa seria a
sede da mesma (Alarcão & Imperial, 1996, p. 43).
Durante a Alta Idade Média houve uma previvência das vias de comunicação. No entanto, no
período islâmico terá surgido uma nova via, ao longo do curso do rio Tejo, associada ao movimento
dos almocreves (Marques, 1996, pp. 487–492). Durante a permanência das comunidades magrebinas
terá existido uma grande tolerância religiosa; se por um lado os colonos eram de origem berbere
e pouco islamizados, por outro, a posição periférica da região em relação ao poder central possibilitou
uma certa autonomia das populações. Por esse motivo não se verificaram atitudes repressoras
em relação à religiosidade das comunidades locais (Cardoso, 1953, pp. 24–25), situação também
evidenciada pela presença de vários topónimos de origem moçárabe na região (Marques, 1993,
pp. 138–143, 192–205; Real, 1995, p. 42).
Com o avanço da Reconquista, o termo da antiga Egitânia foi doado à Ordem do Templo por
D. Afonso Henriques, em 1165 (Oliveira, 2003, p. 207; Nunes, 2003, p. 21; Capelo, 2007, pp. 181–
–182). Esta, devido a diversas vicissitudes não pôde ocupar efectivamente esse vasto território.
Por esse motivo, progressivamente, as áreas alvo de doação foram sendo subtraídas a esse espaço,
primeiro a Herdade de Açafa e depois a Herdade da Cardosa. Porém, quando os templários tomaram
posse efectiva desta última, já existia uma comunidade aí instalada, na designada Granja do
Castelo. Em 1210, o seu donatário, Fernão Sanches, doou à Ordem o termo da Cardosa, mas reservou
para si, até à sua morte, a alcaidaria da povoação existente, Vila Franca da Cardosa (Castelo
Branco, 1961, p. 1; Oliveira, 2003, p. 16). A norte existia também a Granja de Mércoles, onde ficaria
outra povoação, Moncarche, que começou a prosperar logo após o domínio templário (Martins,
1979a, p. 7; Duarte, 1996, p. 59). Assim, em 1214, D. Afonso II confirmou a doação da Cardosa e em
1215, Frei D. Pedro Alvito, 11.º Mestre do Templo, deu foral a Castelo Branco de Moncarchino
(Martins, 1979a, p. 7; Duarte, 1996, pp. 59–62; Capelo, 2007, pp. 193–195), sediando ali a Ordem
até à sua extinção em 1314 (Castelo Branco, 1961, p. 2; Oliveira, 2003, p. 32).
A instabilidade fronteiriça obrigou à construção de um castelo e respectivas muralhas para
protecção da população aí existente. Em 1229, começou a ser edificado, no interior daquele, a residência
dos Alcaides, comendadores da Ordem do Templo. No mesmo espaço foi erguida também,
eventualmente sobre as ruínas de um templo de origem moçárabe, a Igreja de Santa Maria
(Cardoso, 1953, pp. 24–25).
Durante o reinado de D. Afonso IV, este ordenou a ampliação das muralhas de Castelo Branco
e Nisa, uma vez que já não tinham capacidade para albergar toda a comunidade que entretanto se
tinha fixado em torno das fortalezas existentes (Gonçalves, 1965, pp. 6–8). Essa reestruturação do
espaço murado poderá ter levado à construção da torre de menagem poligonal, com a sua praça de
armas, que séculos mais tarde foi representada nos debuxos do Livro das Fortalezas. Por essa altura,
também o Palácio dos Comendadores tinha sido reestruturado, mostrando um alpendre porticado
em loggia. Nas imagens daquele livro surge o aglomerado populacional, rodeado por uma muralha
com várias portas, precedida por barbacã mandada construir cerca de 1490 pelo futuro rei
D. Manuel I, enquanto Grão‑Mestre
da Ordem de Cristo (Gomes, 2001, p. 69). Na parte baixa,
desenvolviam‑se
novos espaços urbanos, associados na sua maioria a edifícios religiosos e a ofícios
profissionais, como os arrabaldes de São Miguel, São Sebastião, Corredora, oleiros e açougues
(Nunes, 2002, p. 59). É igualmente na obra de Duarte d’Armas que consta a primeira planta do
complexo da alcáçova.
No final do século XV, tal como noutras localidades raianas, também em Castelo Branco se
verificou um aumento populacional provocado pela entrada de judeus e mouriscos, expulsos de
Castela em 1493. A estas comunidades foi imposta, em 1498, a conversão ao Cristianismo, caso
contrário seriam obrigadas a abandonar o reino de Portugal (Dias, 1998, pp. 48–49). Em 1510,
D. Manuel renovou o foral da vila, que durante a reorganização administrativa de 1532–1536, já no
reinado de D. João III, se tornou cabeça de comarca e foi elevada a vila notável em 1535 (Dias, 1998,
p. 35).
No entanto, este dinamismo florescente sofreu diversos reveses a partir do século XVII. A vila
foi saqueada entre 1646 e 1648 durante as Guerras da Restauração. Foi novamente sitiada no
âmbito das guerras da Sucessão Espanhola (1704) e dos Sete Anos (1762) (Oliveira, 2003, p. 31).
A alcáçova e a Igreja de Santa Maria foram consecutivamente atacadas (Silva, 1998a, pp. 25).
Apesar disso, a vila sobreviveu e readquiriu importância quando foi elevada a cidade e a sede
de diocese (1770–1771). Além de serem construídos novos palácios na zona baixa da urbe, fora de
portas, a Igreja de São Miguel, designada Sé‑Episcopal,
foi ampliada e reformada (Conceição, 2004),
assim como a quinta de recreio do Bispo da Guarda, que se tornou Paço Episcopal (Silva, 1998b,
pp. 6–7).
Durante a Invasão Francesa de 1807, Castelo Branco foi local de escala do exército de Junot,
tendo sido saqueada durante vários dias. A Igreja de Santa Maria entretanto reconstruída foi novamente
arrasada, passando o culto para a capela de São Brás situada nas proximidades (Oliveira,
2003, p. 31).
Após a Guerra Civil que se seguiu à Guerra Peninsular, os poderes locais autorizaram a população
a reutilizar os materiais construtivos do castelo, palácio e muralhas da vila, símbolos do poder
absolutista até aí vigente, que foram assim progressivamente desmontados. Esta realidade terá afectado
igualmente o pelourinho (Dias, 1935, pp. 39–42). Na sequência da extinção das ordens religiosas,
decretada em 1834, várias ermidas e capelas foram igualmente desmanteladas (Oliveira, 2003,
pp. 42–50). Esta situação foi agravada pela extinção do bispado em 1881, por breve apostólico do
papa Leão XIII.
Actualmente na alcáçova subsiste a Igreja de Santa Maria, a norte da qual se encontra um pano
de muralha onde se integram duas das torres da velha fortaleza. No espaço entre estas, sobre um
aterro criado em 1867, foi construída uma escola, hoje encerrada, depois de utilizada para diversos
fins. Da cerca da vila existem ainda vários troços que se confundem com a malha urbana,
nomeadamente na parte baixa da antiga vila.